sexta-feira, 9 de janeiro de 2009

Um dia descobriu que podia voar. Na verdade, tudo começou na infância, entre uma brincadeira e outra, quando o mundo parecia a seus olhos uma grande máquina de inventar. No início não se importou muito... era um menino ocupado com seus brinquedos e estripulias, não tinha tempo a perder. Levantava cedo da cama, olhava para o céu e admirava a dança meio desengonçada das nuvens. Então, fazia o que mais gostava: corria sem limites, desafiava o vento e, se o dia estivesse chuvoso, sem problemas, abraçava a chuva e esperava ansiosamente para colher os primeiros raios de sol, os quais ia espalhando devagarzinho pelo caminho. Era um espetáculo tão bonito que até o entardecer dava um jeitinho de chegar mais cedo para ver o menino passar! Quando vinha a noite, esticava os braços, como se pudesse alcançar as estrelas, que por sua vez brincavam de se esconder somente para escutar o som de sua gargalhada.
Em um desses dias, porém, o menino acordou diferente: não quis apostar corrida com o vento, sequer reparou que chovia e não colheu nem um raiozinho de Sol: de repente tudo havia perdido a cor... Pôs-se a lembrar da mãe, suas últimas palavras, seu olhar angustiado, momentos antes de virar anjo. Assim, sentindo em seus ombros o peso do mundo, o menino encurvou-se e deitou debaixo de uma árvore, fechou os olhos, sentiu uma lágrima escorrer em sua face e desejou ir para bem longe... Não se sabe ao certo o que acontece quando desejamos algo com muita vontade, mas, o fato é que algumas vezes a linha que separa o sonho da realidade simplesmente deixa de existir.
Ainda de olhos fechados, o menino sentiu que seus pés já não tocavam o chão. Medo e surpresa disputavam um espaço no interior de seu pequeno e franzino corpo. E se caísse? Tal pensamento lhe proporcionava uma insegurança que o impedia de olhar ao redor. Não devemos, porém, subestimar a curiosidade de uma criança: respirou fundo, encolheu os ombros e foi abrindo os olhos devagarzinho... A visão era belíssima... Em sua mente infantil jamais havia imaginado a existência de tantas cores, tantas formas, tantos seres... Realmente podia voar!
O medo transformou-se em prazer e, nosso herói conheceu muitos lugares, visitou terras inexploradas e culturas inimagináveis, o que lhe deu uma idéia: poderia relatar cada viagem, cada novo amigo, cada aventura vivida em um diário. Seu caderninho se tornou, então, um companheiro inseparável. Seu maior prazer era sentar-se em uma torre ou montanha bem alta e reproduzir com seus traços coloridos as paisagens, as pessoas se movimentando apressadas de lá para cá sem se darem conta de que eram observadas por um atento par de olhinhos.
Durante algum tempo o menino caminhou lado a lado com a liberdade. Tornaram-se grandes amigos... Mas, infelizmente, nem tudo é eterno e, um dia, seu pai, que vinha notando a crescente ausência do filho, cobrou explicações. O menino engasgou, procurou as palavras certas, porém, sem saída, soltou:
– Pai, eu sei voar!...
Ao contrário do esperado, o pai não esbravejou, não mostrou qualquer sinal de irritação, simplesmente abaixou os olhos e disse com uma vozinha fraca, quase sumindo, refletindo uma dor que o menino jamais teria imaginado existir:
– Não sabe, não.
Desde esse dia não houve mais passeios ao redor do mundo, o caderninho ficou abandonado em uma gaveta e o nosso menino se tornou uma criança “normal”. Aos poucos a adolescência foi retirando os pedacinhos de infância que ainda restavam e, a dança desengonçada das nuvens, a corrida com o vento e os raios de sol lançados pelo caminho tornaram-se reminiscências a cada momento mais distantes... Nem mesmo as estrelas jamais voltaram a ouvir suas gargalhadas.
Até que chegou o dia em que, definitivamente, o menino, agora homem, foi embora. Suas viagens ganharam um propósito diferente. Já não precisava desejar intensamente, bastava comprar uma passagem de avião. As torres e montanhas foram trocadas por hotéis caros e luxuosos. Já não desenhava as paisagens e as pessoas, afinal, não havia mais aventuras nem amigos. Alcançara, porém, seu objetivo, conseguira agradar seu pai.
Em meio à sua vida agitada, uma triste notícia. O “menino” retorna. Refaz o caminho que por tantas vezes adornou com os raios de sol. Entra em casa, mira-se no espelho, repara no terno elegante, nos sapatos caríssimos, que de repente perderam todo seu valor... Revê seus brinquedos, começa a lembrar de suas aventuras... sobe as escadas correndo, revira as gavetas. Em sua mente um misto de passado e presente... as palavras de consolo há pouco, no funeral do pai... a sensação de vazio experimentada na partida de sua mãe...sensações confusas, há pouco desenterradas... Encontra o caderno, as páginas amareladas pelo tempo... Relê suas anotações... acha graça, se emociona... Recorda as belas viagens... Experimenta mais uma vez a doce companhia de sua amiga liberdade, que se aproxima devagar. Fecha os olhos, nada mais importa.

E, quando se dá conta, seus pés já não alcançam o chão...

2 comentários:

  1. ..Temos que dar um jeito de publicar essas maravilhas hein...Muito lindo..perfeito com toda imperfeição do ser humano....

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  2. Publicar? Eis um sonho, uma esperança que haja um editor louco o bastante!rsrsrs
    Obrigada, Vanessa...

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