terça-feira, 26 de novembro de 2013

Coleção



Possuía uma estranha mania. Não revidava. Não devolvia. Simplesmente pegava as ofensas e as guardava. Uma a uma.
Tudo começou na infância. Ainda menino, em uma brincadeira com os colegas. Não era o mais ágil, na realidade atrasava toda a turma:
- Não quero ficar no time do Pedro! Ele é um mané!
Na primeira vez que ouviu comentários como esse, poderia ter devolvido, “dado o troco”, como dizem popularmente. Mas, não...
Tomou para si... Pacientemente dobrou cada palavra, acomodou-as e deu início a uma curiosa coleção.
Ao longo dos anos, as palavras espinhosas, o sarcasmo, a rejeição, foram cuidadosamente acomodados, inicialmente, em uma pequena caixa, a qual na adolescência deu lugar a uma mochila. Sua única e inseparável amiga. Todos ficavam curiosos, afinal, o que será que aquele rapaz caladão, com um olhar tão evasivo carregava naquela bolsa? Seu aspecto pesado evidenciava a sina daquele rapaz: carregar em suas costas o peso do mundo.
Todos, de alguma forma, contribuíam para o crescimento de sua coleção. A indiferença dos pais, por exemplo, rendia dúzias de itens: desde palavras frias e cortantes a comentários críticos e cruéis. Dia após dia... um peso quase insuportável.

Até que um dia...

- Oi. Qual é o seu nome?

... uma leveza inexplicável. Por alguns segundos, todo o peso esvaiu. Bastou um sorriso, o mais belo que já tinha visto, o mais sincero... Não sabia qual era o seu nome, mas sabia que era linda. Queria estar ao seu lado. Em sua presença o mundo era leve. Pela primeira vez uma amizade, pela primeira vez o amor.

Poderia dizer que a mochila ficou esquecida. Jamais voltou a carregar o peso do mundo... Mas não é bem assim que funciona. O encanto durou algum tempo, porém, a convivência revela segredos, desnuda a alma, muitas vezes sem ao menos precisar de palavras.

Surgiram as primeiras divergências, os inevitáveis conflitos. Agiu como de costume, guardou as ofensas uma a uma... Mas... Agora era diferente, já não havia espaço. E as palavras, frias e cortantes, pesavam cada vez mais. Até que... o inevitável: não guardou as injúrias. Pegou sua enorme mochila e foi atirando, cada sarcasmo, cada palavra espinhosa, uma após a outra, sobre aquele sorriso que outrora lhe trouxera tamanha leveza.
Ela, atônita, agora com a fragilidade de uma flor, já não conseguia revidar. Aceitou calada toda aquela coleção de infortúnios. Olhou atentamente e, sentiu uma dor dilacerante ao perceber que ele havia carregado todo aquele peso, sozinho, por tanto tempo.

Por fim, o silêncio.

Em um canto do quarto, a mochila vazia. Lágrimas nos olhos de ambos. Agora, o mundo possuía a leveza de um abraço.

quinta-feira, 25 de julho de 2013

Seiscentos e Sessenta e Seis


A vida é uns deveres que nós trouxemos para fazer em casa.
Quando se vê, já são 6 horas: há tempo…
Quando se vê, já é 6ª-feira…
Quando se vê, passaram 60 anos…
Agora, é tarde demais para ser reprovado…
E se me dessem – um dia – uma outra oportunidade,
eu nem olhava o relógio
seguia sempre, sempre em frente…
E iria jogando pelo caminho a casca dourada e inútil das horas.
( Mario Quintana )
Poema publicado originalmente no livro Esconderijos do Tempo.