quarta-feira, 1 de julho de 2009

Visão


Levantei da cama pensando que seria um dia comum. Tudo estava normal: minha vida ainda era um grande labirinto escuro. Cumpri minha rotina, saímos do prédio (eu e meu amigo), cumprimentei os vizinhos que encontrei no caminho... Tomei o metrô. Como sempre, a confusão de vozes, os odores característicos dos passageiros, tudo como sempre. Foi, então, que absorvido em meus pensamentos, eu a vi. SIM, a vi. Não era minha imaginação... Por um instante pensei estar ficando louco. Nada, porém, poderá mudar o ocorrido: eu a vi! Linda...Uma beleza peculiar, muito especial! Lia uma revista com um jeito desinteressado, não escutei sua voz, mas tenho certeza que se ela movesse os lábios certamente sairia um som melodioso. Olhei mais atentamente... Seriam pétalas de rosas ao seu redor? Perguntei baixinho ao meu amigo se ele conseguia ver aquela cena magistral. Como resposta só escutei sua respiração tranqüila, aquilo devia significar um sim...
Já em meu destino fiquei observando enquanto ela se afastava. Senti uma grande paz, que foi interrompida por rumores da multidão...Tudo havia voltado ao normal... Havia? Andei alguns passos e, de repente, um forte estrondo, um alvoroço.
– O que aconteceu? – alguém perguntou.
– Aquela criança quase foi atropelada! Se não fosse aquela moça salvá-la...
– Ela morreu?
– Acho que sim!...
Afastei-me lentamente, enquanto os curiosos ainda comentavam sobre o ocorrido. Não vi quem era a corajosa mulher que deu a sua vida para salvar uma criança, mas por algum motivo eu tinha certeza que naquele instante seu corpo estava repleto de pétalas de rosas...


***


Não consigo dormir. Eu vi... Tenho certeza... Dessa vez não foi uma bela jovem. Dessa vez a paz cedeu lugar ao medo. Caminhava tranqüilamente no calçadão. O som do mar é um dos mais belos que existe. Não sei por quê, mas pouco a pouco um outro som se destacava em meio ao emaranhado de ruídos: eram passos. Lentos. Ritmados. Calculados. Passaram por mim. Foi quando o vi. Ameaçador, tenebroso. Envolvido por um manto negro. Senti um arrepio atravessar todo o meu corpo. Não vi seu rosto, mas não precisava, pois a respiração ofegante do meu amigo me explicava tudo...
Continuei caminhando, agora um pouco mais devagar. Os passos desconhecidos se afastavam, mas misteriosamente seu som ainda se destacava dos demais.
SILÊNCIO.
Um disparo. Gritos.
Agora os passos não andavam. Corriam. Eram passos de um assassino.

***

Ainda não compreendo bem, mas já não duvido dos meus olhos. Vejo essas “pessoas” por toda a parte. Não sei quem são ou o que são. Algumas vezes são serenos e irradiam por onde passam uma paz inigualável, outras simplesmente me despertam medo. Acho que não sabem que as vejo. Aliás, ninguém sabe. Achariam que estou louco... O jeito é aprender a conviver com elas...


***


Os trechos acima são fragmentos do diário de Marcelo, um jovem de 25 anos que perdeu a visão ainda na infância.Encontrados na memória de seu computador após sua trágica morte – salvando um suicida do afogamento – , os relatos ainda causam muita controvérsia entre aqueles que os lêem. Há quem acredite que não passam de frutos da imaginação de um rapaz cego e solitário, que só possuía como amigo um cão labrador. Mas há quem jure – principalmente aqueles que testemunharam sua morte – que Marcelo tinha o dom de ver muito além do que é permitido aos meros mortais; que tinha o estranho (e maravilhoso) dom de enxergar a alma humana.