sábado, 3 de janeiro de 2009

DOM QUIXOTE URBANO


O relógio marcava seis horas. Detestava o barulho do despertador, pois era o sinal de mais um dia rotineiro. Levantou-se lentamente... Poderia parecer estranho, mas sentia que aquele dia não seria como os outros. Durante o café ficou em silêncio todo o tempo, pôs-se a observar a esposa, seus olhos, seu sorriso... Como pôde ignorar sua beleza por tanto tempo? A mulher meio desconfiada perguntou se estava tudo bem. Com um aceno respondeu que sim. Alheias, as crianças brincavam e conversavam alegremente enquanto devoravam um pedaço de pão. Eram seus herdeiros... Herdeiros? Sequer possuíam um teto... O pequeno cômodo alugado onde moravam mal dava para os quatro sobreviverem!
Contrariando, porém, toda expectativa, naquele dia se sentia um rei. A rainha, na borda do fogão e seus dois pequenos príncipes, com seus uniformes surrados de uma escola pública, pareciam a seus olhos a mais linda família que alguém poderia ter. Antes de sair deu em cada um deles um beijo demorado, se perguntando como nunca havia reparado que era tão rico! A expressão da esposa era agora de assombro. O que teria acontecido para que o marido ficasse tão estranho? Sacudiu os ombros e deduziu que “aquilo devia ser coisa de momento”.
Agora na rua, João – este era o seu nome – fazia o trajeto que o conduziria ao trabalho. Não tomou o ônibus, como de costume. Sentiu uma inexplicável vontade de caminhar... o mundo hoje se apresentava tão diferente a seus olhos... Olhou para o céu, fazia tempo que não notava a sua existência... Estava azul, um azul tão bonito, que não pôde disfarçar um sorriso. Chegou ao centro da cidade e, de repente viu os arranha-céus, mas... havia alguma coisa diferente... Com as mãos calejadas pelos anos de trabalho pesado, esfregou os olhos, não conseguia compreender... Diante de si os edifícios se transformavam paulatinamente em monstros ameaçadores, como aqueles que via na tv. “Estou ficando louco” , pensou. Mas, tal pensamento não o impediu de se imaginar com uma brilhante armadura dourada e uma espada afiada, a fim de vencer os gigantescos inimigos. Conseguia até imaginar a gratidão das pessoas e os brados de euforia pelo seu ato heróico!
Ainda radiante com sua “coragem”, continuou sua caminhada com passos firmes, até que avistou uma moradora de rua, que todos os dias, durante muitos anos, mendigava no mesmo lugar. Quando se aproximou da mulher, João percebeu que suas roupas, antes rasgadas e sujas foram se transformando em um lindo vestido que, tal como a beleza de seu rosto, encantava a quem olhasse. Ignorando, então, o olhar incrédulo da mendiga, aproximou-se e, prontamente, beijou sua mão, fazendo um gesto de reverência, como se estivesse diante de uma distinta dama. Depois, sem uma palavra, se afastou, mantendo a postura e a firmeza dos passos de um soberano. Nem escutou quando, ainda surpresa, a pedinte balbuciou: “esse aí está pior do que eu!”
Quando finalmente chegou ao trabalho, já não estranhava seus pensamentos de grandeza e realmente acreditava pertencer à realeza. Cumprimentou os companheiros da obra, mas ao invés de começar a fazer massa, pregar tábuas ou carregar tijolos, começou a subir nos andaimes. Passo a passo, o chão parecia se afastar cada vez mais... Até que as pessoas se transformaram em pontinhos minúsculos... Estava no topo, agora era realmente um rei! Já não teria que se preocupar com a comida das crianças, as contas a pagar, o olhar de decepção da mulher a cada dia de privação. Agora era um rei! E, segundo seu conhecimento, um rei poderia fazer tudo! Até mesmo voar...
Sim, poderia fazer tudo! Era um rei! Subiu no parapeito ainda inacabado da construção, meio cambaleante tentou se equilibrar... Sentiu o vento em seu rosto, fechou os olhos, abriu os braços como um pássaro... pôs um pé à frente, depois o outro...
João não plantou um pé de feijão, não se perdeu na floresta, nem foi um apóstolo... Mal conhecia o Dom João, da História do Brasil. O nosso João era um cidadão comum, até um dia acordar rei. Até pensar que poderia voar. Até ter seu corpo cercado por curiosos em uma avenida de uma grande cidade. Até se permitir, por um dia, ser mais que um operário. Até se permitir, ao menos por um dia, ser um sonhador.

6 comentários:

  1. Sem palavras..que maravilha Jose..Espero que você "se permita" não somente por um dia continuar esse traço de relação tão própria que tem para escrita...Lindo, lindo, Lindo...

    Bjinhos...vanessa

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  2. Josi, amei o texto!
    "Morreu na contramão atrapalhando o trânsito", bem diria Chico.
    Beijos.

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  3. Josi!!!!!
    Realmente muito bom... Menina que maravilha, acho que você já se percebe como uma pessoa livre, por isso consegue criar coisas tão bonitas! Continue nesse caminho que você pode chegar no topo! Já pensou nisso? rs Beijo! Agora além de amiga, sou fã da sua arte! Divulgue mais coisas aqui, conheci o seu potencial em outras obras que tive o privilégio de ler, além de outras artes que você sabe fazer tão bem quanto a escrita... Parabéns amiga! Estou muito orgulhosa!
    Marceli

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  4. Maravilhoso o texto ´´Dom Quixote urbano`` adorei, vc tem muito talento menina continue assim que vc vai chegar longe !!!

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  5. ameeeei muito bom mesmoooo!!!
    Vou contar pra todo mundo q foi minha amiga q fez!!!!!!!!!

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  6. Nossa. Só espero um dia não acordar 'rei' que nem o João que não plantou um pé de feijão. Você vai longe, garota *;

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